quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Anotações AdCummulus 14 - O cristianismo (primitivo) na periferia (do Império) - Etiópia

Em nossa série sobre a capilaridade e difusão do cristianismo primitivo, discutimos anteriormente a ampla rede de solidariedade e acolhimento, a disposição de, no limite, se sacrificar por sua fé, mas também sua  expansão gradual entre as elites romanas, a partir de alguns influentes libertos da casa imperial,  da burocracia palaciana em Roma, nas províncias, e no exército. Além disso, discutimos o primeiro caso de possível conversão de governante, o Rei Abgar VIII de Edessa, cerca de 100 anos antes de Constantino, e a influência de seus conselheiros Bardasanes e Julio Africano.   

No entanto, o cristianismo não se expandiu apenas dentro do Império Romano. De forma paralela e contemporânea, alguns estados na periferia do Império adotaram o cristianismo como sua religião. A Armênia é, provavelmente, o primeiro estado cristão, seguida da Ibéria (atual Georgia) e o reino de Axum (atual Etiópia). Este último, objeto deste post.  

Etiópia (Axum)



Moeda do Rei Ezana de Axum, meados do IV sec.DC, via wikicommons

O Reino de Axum (ou Aksum), correspondia ao norte da atual Etiópia, a Eritréia e sudeste do Sudão, tendo, em alguns momentos, se expandido além do Mar Vermelho e ocupado partes do atual Iêmen. Por volta do ano 316, dois irmãos, Frumêncio e Edésio, provenientes de Tiro (Libano) são capturados por piratas em uma viagem no Mediterrâneo, e vendidos a mercadores de escravos, que os levam para Axum. Lá passam a servir no palácio real, onde se destacam, tornando-se secretário e mordomo do Rei. Com a morte do monarca, a Rainha, agora regente, os nomeia como tutores do príncipe herdeiro, chamado Ezana. Eles atuam também para fomentar o cristianismo e converter a corte.

Professora Francoise Thelamon, da Universidade de Rouen (França), descreve mais detalhadamente as fontes literárias da conversão de Axum ao cristianismo, a partir de Rufino de Aquiléia, que no ano 401 traduziu os dez volumes da história eclesiástica de Eusébio de Cesárea (concluído no ano 325), e atualizou o trabalho, com mais dois volumes, até o tempo de Teodósio, o Grande (que morreu em 395 DC).

É a Rufino de Aquileia que devemos o relato mais antigo da introdução do cristianismo no reino de Axum (Etiópia), que ele chama de Índia ulterior. No século IV, Axum era um Estado poderoso, cujo rei tinha o título de "negus" e de "rei dos reis"; atestam-no inscrições em língua e escrita etíopes (gueza) e sul-arábicas, e designam um rei Ezana que não parece mais exercer suserania real do outro lado do mar Vermelho, mas que comanda campanhas vitoriosas na África, pelas quais agradece primeiro a vários deuses, e depois a um só, chamado "Senhor do céu". Ora, Rufino, segundo o testemunho de um deles, relata que dois jovens cristão originários de Tiro, feitos prisioneiros durante uma viagem, tinham se posto a serviço do rei do lugar; o mais brilhante, Frumêncio, logo dirige a chancelaria e, quando da morte do rei, exerce o papel de regente junto a rainha e seu jovem filho. [1]

 

Base do barco de Natakamani 
e Amanitori, de Wad Ban Nag,
Museu Egípcio de Berlim, por
Sven-Steffen Arndt, via wikicommons 

No relato de Atos dos Apóstolos 8, Filipe, o evangelista, é orientado por Deus a se dirigir a estrada que ligava Jerusalém a Gaza, onde encontra um eunuco, que era tesoureiro de Candace, Rainha dos Etíopes, e o instrui no evangelho e batiza. Candace ou Kandake, na verdade, não era um nome, mas um título, de várias rainhas governantes de Cuxe ou Kush. O poderoso reino de Cuxe, ou Núbia, que existiu no extremo sul do Egito e o atual Sudão, de Assuã a Cartum, entre a primeira e a sexta catarata do Rio Nilo. Em Números 12, Miriam e Arão entram em conflito com Moisés, por conta da esposa dele, que era Cuxita. Os núbios chegaram a conquistar o Egito, sob o comando de Piiê, tendo os chamados "faráos negros" reinado durante a 25ª dinastia (744 - 656 AC). Assim, quando Jerusalém foi cercada pelos exércitos assírios (701 AC), o Rei Ezequias contava também com o socorro dos seus aliados cuxitas "Senaqueribe fora informado de que Tiraca, rei etíope do Egito, estava vindo lutar contra ele" (II Reis 19:9). No início da era da cristã, Candaces como Shanakdakhete e Amanitore governaram Cuxe a partir da cidade de Meroe. Contudo,  o reino de Cuxe, no tempo de Atos dos Apóstolos, era politicamente distinto do Reino de Axum, que ficava mais ao sul. É justamente o Rei Ezana de Axum, por volta do ano 350 DC, que destroi Meroe e subjuga Kush. É a partir da conquista de Kush/Cuxe que o Reino de Axum passa a ser identificado como Etiópia. 

O início do cristianismo na Etiópia e a influência de Alexandria

Ele [Frumêncio] dá a negociantes romanos de passagem a possibilidade de construir igrejas e favorece um início de evangelização da população. Quando o príncipe se torna rei, Frumêncio parte para Alexandria, onde é consagrado bispo por Atanásio, em torno de 330. De volta a Axum, prega com sucesso a fé definida no Concílio de Nicéia, como confirma, em 356, uma carta do Imperador Constâncio II aos soberanos de Axum, Ezana e Sazana, o que não implica, é claro, que eles sejam cristãos. (...) Enfim, numa inscrição em grego , de data incerta, um rei Ezana se diz "servidor de Cristo", cuja divindade proclama , e afirma sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. No fim do século V, monges sírios prosseguem a evangelização e desenvolvem o monaquismo, mas a Igreja da Etiópia permanece em comunhão com Alexandria". [1]

Frumêncio, ao ascender na corte do reino de Axum, procura fomentar a expansão do cristianismo naquele país primeiro a partir de comerciantes estrangeiros que passavam e/ou formavam a comunidade de expatriados lá, e segundo obtendo reconhecimento e suporte das autoridades da Igreja em Alexandria (Egito), o patriarcado mais próximo, que era dirigido pelo venerado Atanásio, o que ocorre em 330 DC. Nesse processo, se estabelece uma comunhão milenar entre a igreja etíope e o patriarcado de Alexandria (posteriormente Igreja Copta do Egito), que, em termos gerais, perdura até os dias de hoje. 

Assim, a Igreja Etíope seguiu Alexandria e os ensinos de Atanásio, na defesa do Credo de Niceia contra o arianismo. Os arianos concordavam com o restante da Igreja que Cristo, o Verbo, "estava no princípio com Deus, que tudo foi feito por meio dele, e sem ele , nada do que existe teria sido feito" (Evangelho de João 1:2-3), mas sustentavam, que o Verbo foi criado por Deus antes do tempo, não sendo, portanto, eterno ou de mesma substância, enquanto que no Concílio de Niceia (325 DC) o Verbo foi definido como "gerado pelo Pai antes de todos os séculos (...) e consubstancial com o Pai". O arianismo se provou extremamente influente e persistente, e a controvérsia por ele gerada perdurou até o século VII, inicialmente restrita ao oriente, e posteriormente sentida no ocidente do Império, em face da conversão de alguns povos bárbaros, como os visigodos, a essa forma de cristianismo. Nesse contexto, o Imperador Constâncio II (353-361) era ariano convicto e tenta pressionar os cristãos etíopes em sua carta aos reis de Axum, sustentando que o Bispo Frumêncio foi ordenado por Atanásio, a quem ele acusa de ser culpado de 10 mil crimes, e portanto sua permanência na função deveria ser avaliada por George da Capadócia, a qual o Imperador havia instalado como Patriarca no lugar de Atanásio. Constâncio parece já antecipar que sua solicitação dificilmente seria atendida pois diz ao Rei que os crimes eram conhecido "a menos que você, somente, finja ignorar o que todos já sabem". Ezana parece ter mesmo ignorado o Imperador Romano pois Frumêncio continuou em seu posto. 

O fato da nascente igreja etíope ter ficado do lado de Atanásio naqueles tempos difíceis é significativo pois ele era naquele momento um fugitivo, os arianos tinham completo suporte imperial, e, nas palavras de Jerônimo "o mundo inteiro foi tomado de assombro, ao se descobrir ariano". Atanásio e seus seguidores, com a ajuda dos axumitas, eventualmente triunfaram e, com pequenas variações, a formulação do concílio de Niceia foi referendada pelos bispos reunidos no I Concílio de Constantinopla (381 DC), no que ficaria conhecido como Credo Niceno-Constantinopolitano. Cem anos depois, porém, a Igreja Etíope (assim como a Igreja Armênia) também seguiria o Patriarcado Copta de Alexandria na defesa do Miafisismo, que ensina que Jesus Cristo é plenamente humano e plenamente divino com uma única natureza, não aceitando o credo definido no Concílio de Calcedônia (451 DC), adotado pela Igrejas Ortodoxa Grega, Católica Romana e Evangélicas, que defende que Jesus possui as natureza humana e divinas unidas numa única pessoa. [2] 

O Rei Ezana e o avanço do cristianismo na antiga Etiópia - Inscrições, moedas e outros artefatos

O avanço da cristianização da Etiópia é evidenciada não só pelas fontes literárias contemporâneas acima, todas externas ao Reino de Aksum, mas também (e principalmente) por inscrições, moedas e monumentos (quase todos de natureza pública). Entre esses artefatos, se destacam as  inscrições em pedra encontradas na antiga capital Axum, no Porto de Adulis (atual Eritreia) e na conquistada Meroe, em grego, ge'ez (ou etíope clássico), e sabeu (língua falada em Sabá, no sul da Península Arábica, no atual Iêmen). Em alguns casos, como na famosa "Pedra de Ezana",  há versões nessas línguas em paralelo, como na Pedra de Roseta egípcia. O Professor Graham Connah (1934-2023), do Departamento de Estudos Clássicos e História Antiga da Universidade da Nova Inglaterra (Austrália) escreve:

"Aksum is also notable for the discovery of several Greek, South Arabian and Ge'ez stone-cut inscriptions of the fourth-century King Ezana, in whose reign Christianity appears to have been adopted (Pankhurst 1961:28-30; Munro-Hay 1991: 224-9). These inscriptios, already referred to several times, are of  very great historical significance. It is rare indeed that African archaeological evidence can speak to us so directly: 'I Will rule the people", claims Ezana, 'with righteousness and justice, and will not oppress them, and may they preserve this Throne which I have set up for the Lord of Heaven' (Pankhurst 1961:30) (traduçãoAksum também é notável pela descoberta de diversas inscrições em pedra gregas, sul-arábicas e ge'ez do rei Ezana, do século IV, em cujo reinado o cristianismo parece ter sido adotado (Pankhurst 1961:28-30; Munro-Hay 1991:224-229). Essas inscrições, já mencionadas diversas vezes, são de grande importância histórica. É raro, de fato, que evidências arqueológicas africanas possam nos falar tão diretamente: "Governarei o povo", afirma Ezana, "com retidão e justiça, e não os oprimirei, e que eles preservem este Trono que erigi para o Senhor do Céu" (Pankhurst 1961:30). [3]

Stuart Munro-Hay (1947-2004), que foi professor nas universidades de Cartum, Nairobi, Edinburgo e Cambridge, e um dos principais especialistas na história do Império Axumita, compilou algumas das mais relevantes inscrições daquele período [4]. A principal, para os nossos propósitos, é um inscrição grega (DAE 11), em que Ezana declara de forma clara e inequívoca sua fé cristã (o termo DAE, seguido numeração, se refere a Deutsche Aksum-Expedition, liderada por Enno Littmann, que publicou as inscrições em 1913):

Pedra de Ezana, via wikicommons

Na fé em Deus e no poder do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que me salvaram o reino, pela fé em seu filho Jesus Cristo, que me ajudou e sempre me ajudará. Eu, Azanas, rei dos axumitas, dos himiaritas, dos reidanos, dos sabeus, de Sileel, de Khaso, dos bejas e de Tiamo, Bisi Alene, filho de Ella Amida, servo de Cristo, agradeço ao Senhor meu Deus, e não posso declarar plenamente seus favores porque minha boca e minha mente não podem (abraçar) todos os favores que ele me deu, pois ele me deu força e poder e me favoreceu com um grande nome por meio de seu filho em quem eu cri. E ele me fez o guia de todo o meu reino por causa da minha fé em Cristo, por sua vontade e no poder de Cristo, pois ele me guiou. E eu creio nele e ele se tornou um guia. Saí para lutar contra os Noba porque os Mangartho, Khasa, Atiaditai e Bareotai clamavam contra eles, dizendo: "Os Noba nos oprimiram; ajudem-nos, pois nos perturbaram com a matança". E parti pelo poder de Cristo, o Deus em quem eu acreditava e que me guiou. Parti de Aksum no oitavo dia, um sábado, do mês aksumita de Magabit, com fé em Deus, e cheguei a Mambarya, onde alimentei meu exército [4].  

E a versão do mesmo monumento em ge'ez (ou geza), língua corrente na população de Axum naquele período, descreve a mesma incursão de Ezana contra os Noba (os já mencionados núbios, de Meroe), mas não nos mesmos termos. Por exemplo, as repetidas menções a Jesus Cristo e a Trindade são substituídas por um mais genérico "Senhor do Céu":

Pelo poder do Senhor do Céu, que no céu e na terra detém poder sobre todos os seres, Ezana, filho de Ella Amida, Bisi Halen, rei de Aksum, Himyar, Raydan, Saba, Salhin, Tsiyamo, Beja e de Kasu, rei dos reis, filho de Ella Amida, nunca derrotado pelo inimigo. Que o poder do Senhor do Céu, que me fez rei, que reina por toda a eternidade, invencível, faça com que nenhum inimigo possa resistir a mim, que nenhum inimigo possa me seguir! Pelo poder do Senhor de Tudo, fiz campanha contra os Noba quando os povos Noba se revoltaram e se gabaram. "Eles não ousarão cruzar o Takaze", disse o povo Noba. Quando eles oprimiram os povos Mangurto, Hasa e Barya, e quando os negros lutaram contra os vermelhos e eles quebraram sua palavra pela segunda e terceira vez e mataram seus vizinhos sem piedade, e saquearam nossos mensageiros e os emissários que enviei a eles para admoestá-los, e eles os saquearam de tudo o que tinham, incluindo suas lanças; quando finalmente, tendo enviado novos mensageiros aos quais eles não quiseram ouvir, mas responderam com recusas, desprezo e atos malignos; então entrei em campo. Parti pelo poder do Senhor da Terra e lutei no Takaze e no vau Kemalke. Ali os coloquei em fuga e, sem descansar, segui os que fugiam por vinte e três dias, durante os quais matei alguns em todos os lugares onde paravam. Fiz prisioneiros outros e os saqueei. Ao mesmo tempo, os do meu povo que estavam no campo trouxeram cativos e saquearam [4].

A terceira versão desta inscrição, agora em sabeu, apresenta ainda outras características, que Munro Hay descreve da seguinte forma "a terceira versão do texto DAE 11 é importante por terminar (em um dos lados) com uma cruz, semelhante à encontrada nas moedas atribuídas a esse período logo após a conversão de Ezana. Não possui nome, mas o conteúdo e o estilo permitiram que Schneider (1974, 1976) sugerisse a atribuição" [4]. Ou seja, há uma identidade cristã na inscrição, diferente da versão em ge'ez, mas de forma bem mais discreta que no texto em grego. As diferenças entre as versões  da inscrição da mesma campanha, nas línguas de relações internacionais, da elite cultural e comércio do reino (grego e sabeu), e em ge'ez (a língua do povo) são discutidas abaixo pelo Professor David Phillipson, de Cambridge. Phillipson utiliza outro sistema de referência e numeração das inscrições, RIE, Recueil des inscriptions de l'Ethiopie des périodes pré-axoumite et axoumite, publicado em 1991 (Assim, RIE 190 corresponde a versão ge'ez da inscrição DAE 11 acima, e RIE 271 a versão grega).

RIE190 and RIE271 are both interesting and problematic. The relationship between the Ge'ez (190) and Greek (271) versions is discussed in Chapter 6 - as is important internal evidence for thier date. In the Greek, Ezana refers to his faith in God  and to the power of the Father, Son and Holy Spirit who saved for me the kingdom by the faith of his Son, Jesus Christ, who helped me and will always help me; he descibes himself  as servant of Christ and makes repeted references to the guidance  and power of Christ, in  one instance  designating Christ as the god in  whom I have believed. This is the only one of teh Ezana inscription which makes specific reference to the Trinity. The Ge'ez text, by contrast, does not specify Ezana's name and is less specifically religious , containing no named reference to Christ or any other divinity. In the initial publication of these inscriptions, this distinction between the apparently contemporaneous Greek and Ge'ez text was noted and attributed to different intended readerships. (traduçãoRIE190 e RIE271 são interessantes e problemáticos. A relação entre as versões ge'ez (190) e grega (271) é discutida no Capítulo 6 – assim como evidências internas importantes para sua data. Em grego, Ezana se refere à sua fé em Deus e ao poder do Pai, Filho e Espírito Santo, que me salvaram o reino pela fé em seu Filho, Jesus Cristo, que me ajudou e sempre me ajudará; ele se descreve como servo de Cristo e faz repetidas referências à orientação e ao poder de Cristo, em um caso designando Cristo como "o Deus em quem eu cri". Esta é a única inscrição de Ezana que faz referência específica à Trindade. O texto ge'ez, por outro lado, não especifica o nome de Ezana e é menos especificamente religioso, não contendo nenhuma referência a Cristo ou a qualquer outra divindade. Na publicação inicial dessas inscrições, essa distinção entre o texto grego e o ge'ez, aparentemente contemporâneos, foi notada e atribuída a diferentes públicos-alvo.[5]

Professor Niall Finneran, da Universidade de Winchester (Reino Unido), analisa o processo de cristianização de Axum em comparação, por exemplo, com a conversão de Constantino no Império Romano [6]. Cita algumas inscrições anteriores do próprio Ezana que mencionam divindades gregas e seus equivalentes locais. Nessa linha, a inscrição DAE 4, descreve a campanha contra os Beja, em que Ezana  "(...) em sinal de reconhecimento àquele que nos gerou, o invicto Ares, erguemos estátuas para ele, uma de ouro, uma de prata e três outras de bronze, para sua glória (...)". Ares (grego) ou Marte (romano) era identificado com Mahrem, o deus da guerra dos Axumitas. Da mesma forma, DAE 6 e 7 que são as versões em sabeu e ge'ez da inscrição, louvam além de Mahrem, a "Astarte e Beher" e "Astarte e Meder", esses equivalentes a Vênus e Netuno, respectivamente. Finneran pontua que as novas formulas epigráficas refletem uma mudança da sacralidade real (ainda que alguns aspectos tenham sido absorvidos na chegada do cristianismo), enfatizado pela ligação com Mahrem, para a ideia de servo de Cristo (Gebra Krestos), e reposicionam Axum em um contexto internacional mais amplo [6].  Além disso, com  Constantino e seus sucessores cada vez mais favorecendo o cristianismo no vizinho Império Romano (até interferindo em divergências teológicas, como Constâncio II acima), fazer parte de uma comunidade de governantes cristãos certamente trazia benefícios.       

Roger Schneider (1976c) points out that the Greek and South Arabian versions of the Aksumite texts contain more explicit Christian terminology than the Aksumite version; it is possible that the Christian "message" was being watered down for local consumption, for Christianity had not truly permeated all levels of society and in some places was meeting active resistance in the countryside (...) This is also indicated by changes in coinage mottoes; an issue of MHDYS, for instance, bears a direct Ge'ez translation of the Motto of Constantine at the Battle of the Milvian Bridge: 'by this sign (the cross) you will conquer'. As the coinage was intended for use internationally it made sense to stress very heavily a Christian identity for Aksum and its king. Being Christian conferred benefits beyond rewards in the afterlife; it made sense within the wider framework of eastern Mediterranean trading links. (traduçãoRoger Schneider (1976c) aponta que as versões grega e sul-arábica dos textos axumitas contêm terminologia cristã mais explícita do que a versão axumita; é possível que a "mensagem" cristã estivesse sendo diluída para consumo local, pois o cristianismo não havia realmente permeado todos os níveis da sociedade e, em alguns lugares, encontrava resistência ativa no campo (...) Isso também é indicado por mudanças nos lemas das moedas; uma edição da MHDYS, por exemplo, traz uma tradução direta em ge'ez do lema de Constantino na Batalha da Ponte Mílvia: "por este sinal (a cruz) vencerás". Como a moeda era destinada ao uso internacional, fazia sentido enfatizar fortemente uma identidade cristã para Axum e seu rei. Ser cristão conferia benefícios além das recompensas na vida após a morte; fazia sentido dentro da estrutura mais ampla dos laços comerciais do Mediterrâneo Oriental. [6]

 

O Rei Ezana parece ter adotado uma postura cautelosa ao professar o cristianismo, apresentando de forma mais clara e explícita  sua fé em  monumentos e propaganda direcionada a corte, as elites do reino, e aos estrangeiros, bem como gradualmente retirando as menções a religião tradicional axumita, substituindo por expressões e termos neutros, e por fim por símbolos cristãos mais claros, mas ainda não explícitos. Por exemplo, passou a substituir a crescente e disco em suas moedas, que passaram a ser cunhadas com a cruz ou com inscrição MHDYS, que em ge'ez é o acrônimo para "pela Cruz vencerás" (muito semelhante ao "com esse sinal vencerás", utilizado por Constantino). Assim, o Professor David Phillipson observa como as moedas que Ezana emitiu ao longo do seu reinado passaram a refletir sua fé.

"Study of Aksumite coinage yields fully compatible evidence. The coins of the pre-Christian kings of Aksum bore the crescent-and-disc symbol above the royal portrait (e.g Fig. 69), and this practice was initially followed by Ezana, presumably before his conversion; on later coins, from Ezana onwards, this symbol was replaced by the Christian cross (Fig. 71). Those coins of Ezana and his immediate predecessor which have no religious symbol (Fig. 28) may be interpreted as reflecting uncertaninty as the popular acceptability of the new religion that was subsequently embraced by the king. " (tradução) "O estudo da cunhagem axumita fornece evidências totalmente compatíveis. As moedas dos reis pré-cristãos de Axum ostentavam o símbolo do crescente e do disco acima do retrato real (por exemplo, Fig. 69), e essa prática foi inicialmente seguida por Ezana, presumivelmente antes de sua conversão; em moedas posteriores, a partir de Ezana, esse símbolo foi substituído pela cruz cristã (Fig. 71). As moedas de Ezana e de seu predecessor imediato que não apresentam símbolo religioso (Fig. 28) podem ser interpretadas como reflexo da incerteza quanto à aceitabilidade popular da nova religião que foi posteriormente adotada pelo rei."[7]

Nessa linha, Phillipson conclui que a evidência arqueológica e numismática, converge com a literária, atestando a conversão de Ezana de Axum e sua corte, entre 330 e 340 DC [7]. 

É bastante provável que também sobre o Rei Ezana começaram a ser construídas grandes igrejas, uma vez que escavações recentes no sítio de Beta Samati (no norte da Etiópia entre a capital Axum e Adulis), conduzidas pelo Professor Michael J Harrower (Universidade John Hopkins) e colaboradores, indica a existência de uma antiga basílica, que teria sido utilizada entre os séculos IV e VII DC, considerando datação por carbono 14 e cerâmica: "sementes domesticadas sobrepostas, obtidas por meio de datação espacial, indicam que o uso mais antigo da basílica de Beta Samati data do século IV d.C. (Tabela 2: 3–4). Duas datações por radiocarbono em carvão vegetal datam os estágios finais de habitação em Beta Samati em meados do século VII d.C., e  "cerâmica do período médio ao tardio de Axum, recuperada das camadas superiores da área B, e a cerâmica do período clássico de Axum, recuperada das camadas inferiores, são consistentes com as análises de radiocarbono"[8]. Além dessa basílica, a Catedral de Santa Maria de Sião, até hoje na antiga capital Axum, pode ter sido construída nessa época.   

Mercadores e estrangeiros - Os missionários na Etiópia

Entretanto, durante o reinado de Ezana, apesar dos esforços do Bispo Frumêncio, os sinais de cristianização ficaram  basicamente restritos a esfera de atuação pessoal do monarca, seus monumentos, inscrições e  moedas. E mesmo assim, principalmente aqueles que se destinavam a elite e o público externo. A cristianização da corte foi notável, mas a conversão popular foi um processo gradual que levou gerações. No tempo de Frumêncio e Ezana, a conversão do reino era ainda algo incerto, era necessário que a nossa fé fincasse raízes em pelo menos alguns segmentos e extratos sociais. As convicções religiosas do governante e seu circulo mais próximo, de forma alguma determinam que o impacto entre seus súditos será duradouro, como pode ser observado nos casos do faráo Aquenaton (1353-1336 AC), no antigo Egito, e Juliano, o Apóstata (361-363 DC), que tentou e trazer o Império Romano de volta ao paganismo. O poder da estrutura estatal, dependendo da intensidade e tempo aplicado pelo governante influi, mas são necessários também canais de transmissão sociais. 

Os nove santos, Igreja Abuna Yemata Guh,
via Wikicommons
No Império Romano, o cristianismo se expandiu, durante gerações,  principalmente entre as populações urbanas mais humildes em direção as elites,  notadamente na cidade de Roma e no leste do Império, um processo que durou cerca de 200 anos, com capilaridade da base para o topo. Já discutimos aqui como escravos libertos da Casa Imperial ascenderam socialmente, como Marcia, amante do Imperador Cômodo, e Marco Aurélio Prosenes, mordomo de Caracala. Paralelamente, integrantes das elites sociais se converteram, geralmente por linha feminina, como o caso de Pompônia Grecina (possivelmente), e seus descendentes (certamente). A conversão de Constantino certamente potencializou esse processo, agora do topo para a base. Em Axum, o cristianismo se difunde a partir da elite e das classes mais abastadas de forma muito acentuada. No entanto, observa Phillipson, "mesmo entre os habitantes de elite de sítios urbanos periféricos, parece que a antiga religião foi seguida abertamente até pelo menos o século V".

The period between the mid-fourth and the early-seventh centuries saw Aksum's florescence under the Christian rule. In the considering the archeological evidence, the first point to emphasise is that, if we omit the coins and the stone inscriptions, archeological excavation has yielded remarkably little indication of the initial adoption of Christianity. Around the middle of the fourth century, as discussed in Chapter 12, there seems to have been a significant change in outwards trappings of the royal burial traditions at Aksum. However, explicit evidence for Aksumite Christianity was largely restricted to areas under direct royal control for 100-150 years after the king's conversion; only slowly and hesitantly was the new religion accepted by the populace at large and spread into rural areas distant from the capital. Even among the élite inhabitants of outlying urban sites, it seems that the old religion was openly followed until at least the fifth century" (tradução) "O período entre meados do século IV e o início do século VII testemunhou o florescimento de Aksum sob o domínio cristão. Considerando as evidências arqueológicas, o primeiro ponto a enfatizar é que, se omitirmos as moedas e as inscrições em pedra, as escavações arqueológicas produziram pouquíssimas indicações da adoção inicial do cristianismo. Por volta de meados do século IV, como discutido no Capítulo 12, parece ter havido uma mudança significativa nos adereços externos das tradições funerárias reais em Aksum. No entanto, evidências explícitas do cristianismo axumita foram amplamente restritas a áreas sob controle real direto por 100 a 150 anos após a conversão do rei; apenas lenta e hesitantemente a nova religião foi aceita pela população em geral e se espalhou para áreas rurais distantes da capital. Mesmo entre os habitantes de elite de sítios urbanos periféricos, parece que a antiga religião foi seguida abertamente até pelo menos o século V"[7]

Phillipson aponta que há evidência arqueológica de coexistência de elementos pagãos e cristãos em artefatos e monumentos de Axum. Por exemplo, na Tumba de Arco de Tijolos, em Axum, datada do final do IV século, havia algumas cerâmicas com o símbolo da cruz e outras com crescente e disco. Finneran, por sua vez, pondera que a Etiópia pode reinvindicar o título de estado cristão mais antigo do mundo (depois da Armênia), e vivenciou um modelo de conversão "de cima para baixo" semelhante ao que também se observaria no século VI nos estados núbios de Makuria e Nobatia (remanescentes da queda do Império Cuxe), e de forma mais ampla, nos estados do Cáucaso e entre os anglos saxões na Inglaterra. É provável que houvesse comunidades cristãs no Império Axumita, principalmente entre a comunidade mercantil em Adulis, uma vez que seria inconcebível que o cristianismo não existisse em Axum antes de meados do IV século, face as rotas comerciais via Mar Vermelho, Rio Nilo e Arábia [6]. Assumindo uma difusão da nova fé principalmente através dessas rotas mercantis, é plausível considerar que os primeiros conversos e responsáveis por essa difusão fossem membros dessas comunidades e de estrangeiros residentes associados a ela [6]. Phillipson, por sua vez, pondera que até mesmo a localização dos monumentos reais associados ao cristianismo parece ter sido escolhida naqueles pontos onde a visualização por mercadores e estrangeiros era mais provável, nas duas principais estradas que levavam a capital e no Porto de Adulis, (na atual Eritréia) e distante dos olhos da maior parte da população comum

it seems that Christianity was initially centred on a Greek-speaking local elite and on expatrietes; this may have resulted in resentment and opposition to the new religion by those sectors of the indigenous population who did not know this language, as discussed in Chapter 9. The presence of distinct readership is further indicated by the erection of trilingual stone inscriptions beside the two principal roads leading into Aksum. It may not be irrelevant to note that a comparable - but probably earlier inscription (Chapter 6) erected in this position on the outskirts of Adulis seems to have been written only in Greek. (tradução) Parece que o cristianismo se concentrou inicialmente em uma elite local de língua grega e em expatriados; isso pode ter resultado em ressentimento e oposição à nova religião por parte dos setores da população indígena que desconheciam essa língua, como discutido no Capítulo 9. A presença de leitores distintos é ainda indicada pela construção de inscrições em pedra trilíngues ao lado das duas estradas principais que levam a Aksum. Pode não ser irrelevante notar que uma inscrição comparável – mas provavelmente anterior (Capítulo 6) – erguida neste local nos arredores de Adulis parece ter sido escrita apenas em grego[9]

É relevante, porém, observar que, embora pequena em relação a população em geral, a comunidade de comerciantes e mercadores em torno do Porto de Adulis deveria ser significativa, pois era um dos maiores portos do período, e na região do Mar Vermelho certamente o mais relevante, "hub" portuário para o comércio marítimo com a Arábia, Pérsia e Índia. As rotas comerciais já haviam desempenhado um papel relevante na expansão da fé cristã no Império Romano. Paulo, o apóstolo dos gentios, pioneiro na fundação de igrejas, escreve a Igreja de Roma, "assim, desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico, proclamei plenamente o evangelho de Cristo"  (Romanos 15:19). Ou seja, até aquele momento, o ministério de Paulo havia se concentrado no leste do Império, de Jerusalém até a atual Croácia (Ilíria), onde Atos dos Apóstolos descreve suas viagens missionárias, mas a Igreja de Roma estava a muito estabelecida (É por isso que muitas vezes fui impedido de chegar até vocês. Mas agora, não havendo nestas regiões nenhum lugar em que precise trabalhar, e visto que há muitos anos anseio vê-los (Romanos 15:22-23). Nesse sentido, Paulo encontra Priscila e Aquíla, cristãos provenientes de Roma, que fabricavam tendas (como o próprio Paulo), que ele encontra em Corinto (Atos 18:2), o acompanham a Síria (Atos 18:18), e Éfeso (18:26). Adiante, não mais em companhia de Paulo, Priscila e Aquíla são saudados, agora já tendo retornado a Roma (Romanos 16:3). Da mesma forma, Lídia "vendedora de tecido de púrpura, da cidade de Tiatira", é a primeira convertida na cidade de Filipos (Macedônia), a cerca de 500 km de sua cidade de origem, e na sua casa reúne os novos convertidos. Desta forma, mercadores que se deslocavam de cidade em cidade profissionalmente já desempenham um papel estratégico no período apostólico.  Assim, Professor Munro Hay, pontua a relevância dessas conexões na difusão do cristianismo no Reino de Axum/Etiópia: 


Aksum at this period, the second quarter of the fourth century, was powerful enough to have commercial and perhaps even some political influence across the Red Sea. The country centainly had trading links with the Roman east, perhaps involving some sort of treaty´relantionship. Adulis, for example, was according to the Periplus a 'port established by law' (or 'costumary mart') , implying some sort of international recognition of this status. Some Christian Romans probably resided at Adulis or even at Aksum, and Rufinus alludes to Frumentius alludes to Frumentius' contact with these, who would probably have been the basis of congregations in the towns on the trade routes across Ethiopia. (traduçãoAxum, nesse período, o segundo quarto do século IV, era suficientemente poderosa para exercer influência comercial e talvez até política do outro lado do Mar Vermelho. O país certamente mantinha relações comerciais com o Oriente Romano, possivelmente envolvendo algum tipo de tratado ou relação comercial. Adulis, por exemplo, era, segundo o Periplo, um "porto estabelecido por lei" (ou "mercado costeiro"), o que implica algum tipo de reconhecimento internacional desse status. Alguns romanos cristãos provavelmente residiam em Adulis ou mesmo em Axum, e Rufino alude ao contato de Frumentius com esses indivíduos, que provavelmente constituíam a base das congregações nas cidades ao longo das rotas comerciais que atravessavam a Etiópia [10].

De qualquer forma, no século IV, os canais de transmissão disponíveis para o cristianismo não pareciam efetivos para atingir a população como um todo. As áreas rurais permaneciam fechadas a nova religião. Além disso, havia o risco de uma recepção popular que não fosse apenas indiferente, mas abertamente hostil, como aponta Phillipson: 

Ezana's Christianity seems to have been more openly publicised to a Greek reading public - resident foreigners and/or users of internationally circulating currency - than to his local subjects, among whom scepticism  or opposition may initially have prevailed. Only gradually did Christianity gain acceptance through the Aksumite population beyond the capital's royal, elite e foreign communities (tradução) O cristianismo de Ezana parece ter sido mais abertamente divulgado ao público leitor grego – estrangeiros residentes e/ou usuários de moeda em circulação internacional – do que aos seus súditos locais, entre os quais o ceticismo ou a oposição podem ter prevalecido inicialmente. Só gradualmente o cristianismo ganhou aceitação entre a população axumita, além da realeza, da elite e das comunidades estrangeiras da capital.[7]

Século VI, o cristianismo atinge o povo. Os nove santos e o Rei Calebe 

Se a conversão da casa real e da corte axumita ocorreu no pano de fundo da controvérsia ariana, foi uma outra crise teológica global que permitiu, de forma um tanto insólita, o enraizamento do cristianismo entre o povo etíope. Como indicam os professores Eric Cline e Mark W Graham, a adoção, pelo império romano, dos cânones do concílio de Calcedônia, em 451 DC, levaram alguns dissidentes a buscarem refúgio fora das fronteiras do Império Bizantino, entre os quais um grupo de monges conhecido como "Nove Santos".  Nos anos seguintes, o miafisismo foi um dos elementos pelos quais se diferenciou e se desenvolveu uma identidade religiosa própria da igreja na Etiópia.   

"Pouco tempo depois do Concílio de Calcedônia [451], missionários miofisitas do Egito e da Síria, sendo os mais famosos conhecidos como os "Nove Santos", fugiram do império bizantino, levando com eles o Cristianismo dos miafisitas (...) O miafisismo ajudou a Etiópia a articular uma identidade cristã autoconfiante que não estava sujeita ao patronato bizantino (ortodoxo). O épico nacional etíope, o Kebra Nagast, que tem sua forma original relacionada ao século VI, mostra como uma forma alternativa de Cristianismo se juntou à política na Antiguidade Tardia. Negus (rei) Kaleb (r. c. 520) é um rei cristão justo que divide o mundo habitado entre ele mesmo e os bizantinos. Seu reinado é eterno, pois seu miafisismo é, na realidade, a forma correta e a ortodoxia bizantina a heterodoxa. A ligação da religião e da política era vital para os etíopes, sendo que o Kebra Nagast geralmente constava de fato nos manuscritos bíblicos etíopes [11].


Aos nove santos é creditada a tradução dos textos bíblicos para ge'ez, a introdução de monastérios, o desenvolvimento de práticas litúrgicas contextualizadas a realidade axumita. Em suma, teriam sido os artífices da identidade religiosa da Igreja Etíope, e da segunda, e definita, onda de evangelização. Ocorre que as fontes que detalham a atuação desses missionários são muito posteriores, como as gadlat (vida dos santos), datadas do século XIII ou XIV (embora, concebivelmente, possam ter conservado tradições orais muito antigas). Sendo assim, o Professor Gabrielle Castiglia, do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã (Roma), detalha as grandes dificuldades de inferir historicamente qualquer detalhe especifico sobre a atuação dos nove santos, dissecando os vários estudos anteriores sobre a questão. Pontua, porém, a recente análise de carbono 14 dos chamados Evangelhos de Garima, que são três manuscritos que contém a tradução para o ge'ez dos evangelhos canônicos. Essa tradução é tradicionalmente associada a Abba Garima, um dos nove santos, e que teria chegado a Etiópia no ano 494 [12]. Pois bem, a datação de um desses manuscritos indica uma data compatível (390-570 DC). Sendo assim, apesar das limitações de nosso conhecimento histórico em relação aos nove santos, fato é que o período em que atuaram (o final do V e início do VI século) corresponde a consolidação e popularização do cristianismo no cenário etíope. Professor Castiglia, aponta a construção de forma quase simultânea de (grandes) igrejas no período, com padrão arquitetônico similar, nas principais cidades do reino.

"The 6th century undoubtely represented the heyday of Christianity in the horn of Africa, characterized by a uniche architectural style that evolved from the typical Mediterranean basilica model (phillipson 2009, Di Salvo 2017). This architectural style also incorporated elements reminiscent of teh palaces of secular power in Aksum. Churches were constructed atop high podia made of basalt blocks and schist slabs. Their plans were remarkably similar, almost as if they were built in series, featuring external rectangular profiles, semicircular apses flanked by two lateral rooms, three naves, and endonarthex (tradução) O século VI representou, sem dúvida, o auge do cristianismo no Chifre da África, caracterizado por um estilo arquitetônico único que evoluiu a partir do modelo típico de basílica mediterrânea (Phillipson 2009, Di Salvo 2017). Esse estilo arquitetônico também incorporou elementos que lembravam os palácios do poder secular em Axum. As igrejas foram construídas sobre altos pódios feitos de blocos de basalto e lajes de xisto. Seus projetos eram notavelmente semelhantes, quase como se tivessem sido construídos em série, apresentando perfis retangulares externos, absides semicirculares ladeadas por duas salas laterais, três naves e endonartex [12].   

 

Calebe (Elesbão) de Axum, Igreja da Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, 
Salvador (BA), foto de Paul R Burkley,

Esses fatos coincidiram com a emergência de outro monarca importante para a identidade cristã do reino, Calebe (514-534 DC), que combinou um perfil fervorosamente religioso, uma atuação internacional expansionista, e um enorme carisma. Calebe chama a atenção do Império Bizantino (Império Romano do Oriente) quando, por volta de 520 DC, Yusuf Asar (Dhu Nuwas) ascendeu ao trono de Hymar (Iêmen), até aquele tempo um protetorado axumita. Yusuf, um convertido do judaísmo, iniciou uma perseguição aos cristãos locais. Notícias de mortes e torturas chegaram a Constantinopla, perturbando as autoridades bizantinas, que fizeram uma aliança com o rei Calebe. No ano 525, uma poderosa frota e grande exército deixa Axum, invade o Iêmen e derrota as tropas de Yusuf (que se suicida, possivelmente lançando-se com o cavalo no Mar Vermelho). Axum restabelece assim seu o protetorado sobre o Iêmen, instaurando Sumyafa Ashwa como governante vassalo. Axum volta assim a dominar as duas margens do Mar Vermelho e o comércio entre o norte da África e a Índia. A inscrição RIE 191, em Axum, comissionada por Calebe, descreve esse triunfo:

 

"O Senhor forte e corajoso, o Senhor poderoso na batalha. Pelo poder do Senhor e pela graça de Jesus Cristo, o Filho do Senhor, o Vitorioso, em quem creio, que me deu um reino forte pelo qual domino meus inimigos e esmago a cabeça dos meus adversários, que me guardou desde a infância e me estabeleceu no trono de meus pais... Confio em Cristo para que todos os meus empreendimentos sejam bem-sucedidos e para que eu seja salvo por aquele que agrada à minha alma. Com a ajuda da Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Caleb, Ella Atsbeha, filho de Tazena, Be'ese LZN, rei de Aksum, Himyar, Raydan, Saba, Salhen, e das Terras Altas e Yamanat, e da Planície Costeira e Hadramawt e de todos os seus árabes, e os Beja, Noba, Kasu, Siyamo e DRBT... da terra ATFY(?), servo de Cristo, que não é derrotado pelo inimigo. 

Com a ajuda do Senhor, lutei contra os Agwezat e o HST. Lutei contra eles, tendo dividido minhas tropas. (...) Himyar... Enviei HYN SLBN ZSMR com minhas tropas e fundei uma maqdas (igreja) em Himyar... o nome do Filho de Deus em quem deposito minha confiança.... Construí seu GBZ e o consagrei pelo poder do Senhor... e o Senhor me revelou sua santidade? e permanecerei neste trono... e o coloquei sob a tutela do Senhor, criador do céu e da terra, contra aquele que o destruir, arrancar ou quebrar. E aquele que quiser rasgá-lo ou destruí-lo, que o Senhor o rasgue (...)"[4]

A campanha vitoriosa de Calebe foi, possivelmente, o auge do poder e prestígio do reino de Axum. Professor Munro Hay chama a atenção a um relato contemporâneo do embaixador bizantino que descreve o esplendor da corte do rei axumita que se apresentou:

"em um carro alto, enfeitado com grinaldas de ouro, e apoiado em uma plataforma de quatro rodas puxada por quatro elefantes. Seus nobres aglomeravam-se ao redor, todos armados, enquanto flautas soavam e coristas cantavam (....) anéis de ouro e um colar de ouro compunham suas joias, e sua cabeça estava envolta em um lenço de linho e ouro, com fitas penduradas em ambos os lados. Ele empunhava um escudo dourado e carregava pequenas lanças douradas (...) [13]. 

O embaixador bizantino Nonossus, descreve a capital Axum como uma importante metrópole. O autor contemporâneo Cosmas Indicopleustes, um mercador que percorreu varias rotas comerciais do Mar Vermelho a Índia, escrevendo um verdadeiro guia ilustrado para viajantes, a Topografia Cristã, e coincidentemente estava em Axum quando Calebe organizava sua expedição ao Iêmen, e descreve inscrições de reis anteriores como o monumentum adulitanum. Seus feitos ganharam proeminência na igreja bizantina, e, posteriormente no ocidente cristão. Durante a Idade Média, relatos chegavam a Europa de um grande e poderoso rei cristão, que vivia entre pagãos e muçulmanos no leste, o Preste João, e que logo foi identificado com a Etiópia/Axum, e cuja lenda pode ter sido inspirada, em parte, na impressão deixada por Calebe séculos antes.

Na inscrição, Calebe é chamado de Ella Atseba. Tanto ortodoxos como católicos romanos o canonizaram como Santo Elesbão. No Brasil, a igreja católica utilizou a devoção a Santo Elesbão na cristianização de escravizados negros. A figura do rei negro, guerreiro e altivo foi muito popular, com irmandades dedicadas a ele já no período colonial. Uma delas, a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, fundada em 1740 por escravos e libertos africanos provenientes de Cabo Verde, Costa da Mina e Angola, dedicou uma igreja em 1754, hoje localizada no centro do Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas

[1] Francoise Thelamon (2007) "Povos Cristãos as Margem do Império Romano" in Alain Corbin, Historia do Cristianismo, fls. 135;
[2] Constantino, pouco antes de morrer (ano 337), passou a ser mais simpático ao arianismo, sendo batizado por um bispo pró-ariano, Eusébio de Nicomédia (não confundir com Eusébio de Cesareia). Constantino foi sucedido por seus filhos Constante (337-350 DC), Constantino II (337-340) e o próprio Constâncio II (337-361 DC), que fizeram uma partilha administrativa do Império. Constante reinava sobre a Itália, o Norte da África e a Ilíria; Constantino II governava a península ibérica e as atuais França, Inglaterra, Bélgica e Holanda; e Constâncio II tinha sobre seu controle a Grécia, Egito e as outras províncias do leste do Império. Constante e Constantino II eram defensores do concílio de Nicéia, e Constâncio II era ariano. No entanto, Constantino II tentou invadir os territórios de Constante  e foi derrotado e morto na batalha de Aquileia (Itália), no ano 340. Constante, por sua vez, foi deposto e assassinado pelo usurpador Magnencio, em 350 DC, que por sua vez foi derrotado por Constâncio II no ano 353, que assim reinou até sua morte em 361 DC, atuando fortemente em favor do arianismo. Constâncio foi sucedido por seu primo Juliano, o Apóstata, que tentou restaurar o paganismo, mas morreu em decorrência de ferimentos sofridos na batalha de Samarra (ano 363) ao fracassar em sua invasão a Pérsia. Sem o suporte imperial, o arianismo perdeu tração naquele momento, mas Atanásio (que faleceu em 373) não veria o resultado de seus trabalhos, no Concílio de Constantinopla (381 DC). A citação de Jerônimo é encontrada na Dialogo contra os Luciferianos, 19 CHURCH FATHERS: Dialogue Against the Luciferians (Jerome). A Carta de Constâncio II aos Reis de Axum foi transcrita por Atanásio em sua Apologia ao próprio Imperador (§29 e 31).
[3] Graham Connah (2001) African Civilizations: An Archaelogical Perspective, fl. 83;
[4]  Stuart Munro-Hay  The Inscriptions - Addis Herald, 1/12/2018, webarchive  29/10/2020
[5] D W Phillipson (2014) Foundations of an African Civilisation: Aksum and the Northern Horn, 1000 BC-1300AD, fl. 95;
[6] Niall Finneran (2007) The Archaeology of Ethiopia, fls. 181-182;
[7] D W Phillipson (2014) Foundations of an African Civilisation: Aksum and the Northern Horn, 1000 BC-1300AD, fl. 97-99;
[8] Michael J Harrower et al (2019) Beta Samati: discovery and excavation of an Aksumite town | Antiquity | Cambridge Core, Antiquity , Volume 93 , Issue 372 , December 2019 , pp. 1534 - 1552, 
[9] D W Phillipson (2014) Foundations of an African Civilisation: Aksum and the Northern Horn, 1000 BC-1300AD, fl. 55
[10] Stuart Munro-Hay (1988) The Dating of Ezana e Frumentius, In Alessandro Bossi (2012) Languages and Cultures of Eastern Christianity: Ethiopian (The Worlds of Eastern Christianity, 300-1500), fl. 58. Originalmente publicado em Rassegna di studi etiopici, 32 
[11] Eric H Cline e Mark W Graham (2011), Impérios Antigos, da Mesopotâmia a Origem do Islã, Editora Madras, fl. 329
[12] Gabriele Castiglia (2025) in Early Christianity on the Margins (?): The PIAC Excavations in Adulis (2017-2020) editado por Gabriele Castiglia e Philippe Pergola, fls.  13, 14 e 18;
[13] Stuart Munro-Hay (1981) The Kingdom of Aksum, Kenya Past and Present 13, fl. 36-37


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Anotações AdCummulus 013 "Os da Casa de César Te Saudam - Parte 7 - Soldados de Cristo

Em nossa série sobre o processo de expansão do cristianismo no Império Romano, e sua capilaridade nas elites do Império, discutimos de alguns casos precoces de conversão ainda no primeiro século (um deles, possivelmente, o próprio Erasto de Corinto, citado em Romanos 16:23).  Escravizados libertos que se tornaram influentes nos círculos imperiais já no final do século II e início do século III e, no mesmo período, participantes na administração imperial em Roma e nas províncias. A virada para um governo favorável ao cristianismo foi prenunciada 100 anos antes de Constantino na corte do Rei Abgar VIII de Edessa, com seus conselheiros Bardasanes e Julio Africano. Apesar dessa infiltração e progressão nas elites do Império, o cristianismo ainda era um culto não reconhecido pelas autoridades, citado por Tácito, Plínio e Suetônio como uma superstitio (superstição) "nova" e "prada" (perigosa), perigosa justamente por ser nova, o que se evidencia na perseguição intermitente, que surge aqui e ali em locais e períodos específicos, que levaram a prisão, tortura e martírio. Por fim, tratamos das primeiras evidências materiais do cristianismo, na forma de inscrições funerárias de líderes religiosos e de uma das mais antigas igrejas do mundo, justamente em quartel de uma legião romana. E é nas legiões romanas, que emergem alguns dos mais eloquentes registros dos antigos cristãos, como veremos a seguir..

Os cristãos primitivos e o exército romano

Francisco Trevisani (1709), 
Por volta do final do século II, Tertuliano, descreve o caso de um soldado cristão, que tendo sido honrado com os louros da vitória por seus comandantes, teve de recusar as honras pagãs, sendo objeto de zombaria, destituído de seu posto, preso e martirizado:

Enquanto a generosidade de nossos mais excelentes imperadores era distribuída no acampamento, os soldados, coroados de louros, aproximavam-se. Um deles, mais soldado de Deus, mais firme que os demais irmãos, que imaginara poder servir a dois senhores, só com a cabeça descoberta, a coroa inútil na mão - já até por aquela peculiaridade conhecida de todos como cristão - era nobremente visível. Assim, todos começaram a marcá-lo, zombando dele à distância, rangendo-o perto dele. O murmúrio é levado até a tribuna, quando a pessoa acaba de deixar a hierarquia. O tribuno imediatamente lhe pergunta: Por que você está tão diferente em suas roupas? Ele declarou que não tinha liberdade para usar a coroa com os demais. Sendo questionado com urgência sobre suas razões, ele respondeu:   Sou cristão [1]


Tertuliano crítica, portanto, cristãos alistados em legiões, pois, mais cedo ou mais tarde, teriam que participar de cerimonias, juramentos, ou até honrarias, em que haveria rituais pagãos, além do status ilegal da fé cristã.  No entanto, os evangelhos descrevem Jesus curando o servo de um centurião (Mateus 8:5-13 e Lucas 7:1-10, uma perícope possivelmente parte de uma fonte comum, anterior aos dois evangelhos, a fonte Q), bem como Pedro prega ao centurião Cornélio e sua família (Atos 10).  Além disso, em sua Apologia, ele atesta que já no tempo do Imperador Marco Aurélio (161 - 180 DC), muitos cristãos serviam o exército romano.

Longe disso, nós, pelo contrário, trazemos diante de vocês aquele que foi seu protetor, como vocês verão examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais grave dos imperadores, nas quais ele presta testemunho de que aquela seca germânica foi removida. pelas chuvas obtidas através das orações dos cristãos que por acaso estavam lutando sob seu comando [2]

O episódio referido por Tertuliano, ocorreu em uma campanha do Imperador nas proximidades do rio Danúbio, provavelmente na atual Eslováquia, contra os QuadiProfessor Ronald Syder, do Palmer Theological Seminary (1939-2022) assim descreve o evento:

"In approximately AD 173, Marcus Aurelius Antoninus, Roman emperor from 161-80, and his troops experienced a "miraculous" victory over a vastly larger army of German invaders near the Danube River. Much about the incident is uncertain. But credible Christian and Roman sources tell of an unexpected rainstorm and thunderstorm that saved the exhausted, third-stricken, vastly outnumbered Roman army. We have even discovered a column erceted in Rome sometime after AD 176 that depicts miraculous weather, must have occured. Whereas the Roman sources attribute the miracle to pagan gods, almost all Christian writers say the miracle was the result of the prayers of Christian soldiers in the emperor's army. (Tradução) Aproximadamente em 173 d.C., Marco Aurélio Antonino, imperador romano de 161-80, e suas tropas experimentaram uma vitória "milagrosa" sobre um exército muito maior de invasores alemães perto do rio Danúbio. Muito sobre o incidente é incerto. Mas cristão confiável e Fontes romanas falam de uma tempestade inesperada e trovoada que salvou o exército romano exausto, sofrendo de sede e em grande desvantagem numérica. Foi descoberta uma coluna erguida em Roma algum tempo depois, em 176 DC, que retrata uma virada de tempo milagrosa, que deve ter ocorrido. Enquanto as fontes romanas atribuem o milagre a deuses pagãos, quase todos os escritores cristãos dizem que o milagre foi o resultado das orações dos soldados cristãos do exército do imperador [3]


O relato cristão mais antigo do evento é o do Bispo Apolinário Cláudio, de Hierapólis (atual Pamukale, Turquia), que no ano 177 DC escreveu uma Apologia (defesa) da fé cristã ao Imperador Marco Aurélio, evocando a experiência daquele  Imperador com suas tropas anos antes, atribuindo a vitória as orações dos soldados cristãos de uma de suas legiões. A Apologia de Apolinário não sobreviveu aos tempos atuais, mas fragmentos contendo a história foram preservados por citações na História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia. O relato de Apolinário é ainda mais relevante pois a legião envolvida, a XII Fulminata, estava estacionada nessa época em Melitene, na Capadócia (atual Turquia), região vizinha da Frígia, onde ficava Hierapólis. De toda forma, Cassio Dio, um dos principais autores da Roma Imperial, escrevendo entre 220-230 DC, atribui o milagre a ação de um mágico egípcio, que acompanhava o exército romano. 

Two of the Christian sources (Tertullian and Apollinarius) are dated within twenty-five years of the event. Both these Christian authors say the Christian soldiers were from the Twelfth Legion (Legio XII Fulminata), normally stationed at Melitene in Armenia (Central Turkey today). We known from epigraphical evidence that parts of this legion were in the Danube region at this time. We also Known that were christians in the area of the legion's home base. Also significant is the fact that Apollinarius was bishop at this time, in a area not too far from the legion's home base. It is highly likely, therefore,  that were Christian soldiers present at this important battle" (Tradução)  Duas das fontes cristãs (Apolinário e Tertuliano) são datadas de até vinte e cinco anos após o evento. Ambos os autores cristãos dizem que os soldados cristãos eram da Décima Segunda Legião (Legio XII Fulminata), normalmente estacionada em Melitene, na Armênia. (Turquia Central hoje). Sabemos por evidências epigráficas que partes desta legião estavam na região do Danúbio nesta época. Também sabíamos que havia cristãos na área da base da legião. Também significativo é o fato de Apolinário ser bispo nesta altura, numa área não muito longe da base da legião. É altamente provável, portanto, que soldados cristãos estivessem presentes nesta importante batalha" [3]

É bastante plausível que uma tropa cercada, sem suprimentos, em território hostil e inferior em número frente ao inimigo, pressentindo uma derrota iminente (e com risco de ser massacrada), apele a intervenção divina. Considerando a composição multiétnica e multireligiosa das legiões, provavelmente varias divindades foram invocadas. Os cristãos presentes certamente buscaram a intervenção divina no evento, e interpretaram os acontecimentos como milagre. Marco Aurélio era um estóicoCerca de 150 anos antes, o Apóstolo Paulo usa em seu sermão no Areópago em Atenas (Atos 17) o conceito de Deus naquele que "vivemos, movemos e existimos, e de que também somos geração", encontrado nos filósofos gregos Epimenides, Arato, e Cleanto. e a visão religiosa do Imperador pode ser aproximada a essa concepção, conforme Professor Peter Kovacs, da Universidade Católica Pázmány Péter de Budapeste "Uma divindade abstrata, que se adequa perfeitamente com as atitudes de Marco Aurélio, como evidenciado, por exemplo, pelo Imperador Filósofo após sua vitória no ano 171" [4].  

Há também evidência arqueológica sólida de que cristãos serviam o exército já no início do século III. Como já mencionamos em um post anterior desta série, cerca de 60 anos depois dos eventos envolvendo a XII Fulminata e o Imperador Marco Aurélio, por volta de 230 DC,  temos evidência clara de soldados cristãos e seus familiares que se reuniam na base da VI Legião, em Megido (Israel), como o centurião Gaiano e Aktepous (possivelmente uma viúva), que dedica um memorial ao "Deus Jesus Cristo", no que é um das mais antigos santuários cristãos conhecidos.

Além disso, a XII Fulminata tinha sua base geográfica no que hoje é a atual Turquia,  numa das áreas de maior concentração de cristãos. Como observamos aqui no adcummulus em um post anterior desta série, sobre o magistrado romano Marcos Demetrianos 

"(...)  A região formada pelas antigas províncias romanas da Ásia Menor, Frigia, Galácia, Bitínia e Ponto, Cilícia e Capadócia, correspondente a atual Turquia, constitui, possivelmente, a mais relevante fronteira de expansão do cristianismo primitivo. Conforme Atos dos Apóstolos, a primeira, segunda e terceira viagem missionária de Paulo atravessaram estes territórios. Paulo estabeleceu residência por alguns anos em Éfeso, e escreveu aos Gálatas. O apocalipse foi dirigido "às sete igrejas da Ásia". Mesmo considerando textos do Novo Testamento cuja autoria seja questionada pela maior parte dos estudiosos, como  a carta de Paulo a Igreja de Colossos (50-80 DC) e 1ª Pedro (80-110 DC), que faz menção aos peregrinos do Ponto, Ásia, Galácia, Capadócia e Bitínia, se infere a presença de congregações estabelecidas e capilarizadas no final do século I DC".

Plínio, o Moço, em sua carta ao Imperador Trajano, ainda no ano 110 DC, alerta em relação ao crescimento da "superstição" cristã na Bitínia, "especialmente devido ao número de pessoas que estão em perigo; pois há muitos de todas as idades, de todas as classes e de ambos os sexos, que agora e no futuro provavelmente serão chamados a prestar contas e estarão em perigo; pois esta superstição se espalha como um contágio, não apenas nas cidades e vilas, mas também nas aldeias rurais, que ainda assim há motivos para esperar que possam ser interrompidas e corrigidas". 

O número de inscrições funerárias com algum indício cristão nessas regiões da atual Turquia era muito elevado já no século III, evidenciando que constituíam parte significativa da população, que torna plausível que uma legião ali estacionada tivesse um número significativo de cristãos alistados.  Frank Tombley (1947-2015), que foi professor da Universidade de Cardiff, observa que a maior parte das inscrições cristãs pré-constantinianas se concentram na cidade de Roma, na Frígia, no Norte da África e nas proximidades de Siracusa (Sicília) [5]. Na cidade de Eumêneia (Frígia), a julgar pela evidência epigráfica das inscrições funerárias, o número de cristãos superava o de pagãos no final do III século, tendo cunhado inclusive uma fórmula particular "ele comparecerá diante do Deus vivo". [5]. Por exemplo, em Eumeneia temos a tumba de Aurélio Manos, soldado que chegou ao posto de draconário ( que carregava o dragão, o estandarte das tropas de cavalaria), datada entre 275-300 DC.

Aurélio Niceros segundo preparou esse santuário para ele, sua esposa e seus filhos, e eu fiz meu próprio santuário. Aqui jaz Aurelius Manos, soldado, cavaleiro, arqueiro e portador do estandarte do dragão no estado-maior do mais destacado general Castorius Constans. E quem cuida deste túmulo, você está sobre os olhos de Deus.[5]

A inscrição acima, e as demais citadas nesse post podem ser consultadas na excelente database no site  Christian soldier – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine, mantida pelo Professor Christopher Zeichmann, da Universidade Metropolitana de Toronto, e sua equipe. As inscrições e outros monumentos antigos são publicadas e atualizados periodicamente no Monumenta Asiae Minores Antiqua(MAMA).

Anteriormente, já haviamos discutido inscrições comuns nas áreas rurais da Frígia, com a fórmula "cristãos para cristãos", bem como trazido o trabalho do Professor Stephen Mitchell,(Universidade de Swansea, 1948-2024), citado por Willian Tabernee, indica que na Galácia, perto das cidades de Lista e Derbe (Atos 14), um grande número de inscrições cristãs, muitas com datação anterior a 260 DC (Mitchell 1993, 2:58-59), foram encontradas nas proximidades do Vale do Rio Çarşamba (MAMA 8.100, 116, 118–20, 131, 158–59, 161–65, 167, 199). Uma análise desta e de outras inscrições da área demonstrou que aproximadamente um terço da população deste região específica era cristã antes de 260, aumentando para 80 porcento durante o quarto século (Mitchell 1993, 2:58). Isto é comparável com as estatísticas do Vale do Tembris Superior na Frigia onde as inscrições "de cristãos para cristãos" foram produzidas e onde 80 por cento das sepulturas datadas entre 280 a 310 indicam explicitamente cristianismo.

Assim, boa parte da evidência referente a soldados cristãos surge justamente nessas mesmas regiões.

Marcus Julius Eugenius - Soldado, magistrado, perseguido, torturado, bispo. 

Professor Frank Tombley, reflete sobre a consolidação dos cristãos nos círculos da elite romana ao longo do século III, particularmente no período da Tetrarquia instituída por Diocleciano (284-305 DC).

"In the waning years of tetharchy, there were christians in every sector of social, economic and cultural life. Christians grammarians, rhetoricians and philosophers - like Arnobius of Sicca, Lactantius and Gregory Thaumaturgus practised their professions at important urban centers. Men of grammatical education served as civil servants (Caesarini) in the offices of the imperial palaces, provincial governments ans imperial estates (tradução) Nos últimos anos da tetrarquia, havia cristãos em todos os setores da vida social, econômica e cultural. Gramáticos, retóricos e filósofos cristãos - como Arnóbio de Sicca, Lactâncio e Gregório Taumaturgo exerceram suas profissões em importantes centros urbanos. Homens de educação gramatical serviram como funcionários públicos (Caesarini) nos escritórios dos palácios imperiais, governos provinciais e propriedades imperiais.[6]

Marcos Júlio Eugênio era um desses homens. Natural de Laodicéia Combusta (atual Turquia), era de uma família de elite provincial, casado com a filha de um senador romano, detentor de carreira irretocável no exército e no staff do governador da província, até que foi atingido pela grande perseguição. Após ser torturado e ter que deixar a carreira militar por sua fé, Eugênio se dedica ao serviço da Igreja. Sabemos disso através de uma inscrição funerária extremamente detalhada.

 Marco Júlio Eugênio, filho de Cirilo Celer de Cuesso, membro do senado de Laodicéia, tendo servido ao governador da Pisídia e tendo se casado com Flávia Júlia Flaviana, filha de Caio Júlio Nestório, um homem de posição senatorial romana; e tendo servido com distinção; e quando, entretanto, foi dada a ordem no tempo de Maximino de que os cristãos deveriam oferecer sacrifícios e não abandonar o serviço, tendo suportado muitas torturas sob Diógenes, governador da Pisídia, e tendo conseguido abandonar o serviço, manter a fé dos cristãos; e tendo passado um curto período na cidade dos laodicenses; e tendo sido feito bispo pela vontade de Deus Todo-Poderoso; e tendo administrado o episcopado por 25 anos completos com grande distinção; e tendo reconstruído desde sua fundação toda a igreja e todos os adornos ao redor dela, consistindo de pórticos, quadripórticos, pinturas, mosaicos, uma fonte e um portão externo; e tendo-o mobiliado com toda a construção em alvenaria e, em uma palavra, com tudo; e estando prestes a deixar a vida deste mundo; fiz para mim um pedestal e um sarcófago nos quais fiz gravar o acima exposto, para distinção da igreja e da minha família. [7 ]

A inscrição funerária é uma biografia de Marcos. E há dois momentos distintos. Primeiro, é narrada sua carreira militar e política, interrompida pela grande perseguição. Após aqueles eventos, Marcos se torna um líder religioso, dedicando 25 anos ao episcopado. Ele descreve ter reconstruído o santuário e feito várias melhorias as suas expensas, indicando sua origem abastada, na elite romana.

Professores Cilliers Breytenbach (Universidade Humboldt, Berlin) e Christiane Zimmermann (Universidade de Kiel), observam alguns dos principais pontos da inscrição, como a origem nobre da família de Marcos, que deve ter ascendido a cidadania romana no século I DC (o nome "Julius" indica que a cidadania da família foi obtida sobre os imperadores Julio-Claudianos, que governaram entre 30 AC e 68 DC), "Eugenio", significa de "nobre descendência" em grego, e seu pai ter sido um "decúrio", um membro do conselho municipal, cargo que demandava uma boa condição financeira, já que frequentemente financiavam obras e serviços públicos para a população local (como já explorado no adcummulus aqui). Marcos se casa com a filha de um senador romano, que é outra evidência de prestígio.   

The inscription is divided in two parts, starting with the political career of Marcus Iulius Eugenius in Pisidia and ending with his career in the congregation of Laodicea. Marcus Iulius Eugenius was probably born into a Christian family of high standing; his family was granted citizenship under the Iulii, but the cognomen Εὐγένιος (of noble descent), tha served to identify him reflects the Greek-speaking environment. The father of Marcus Iulius Eugenius, Cyrillus Celer,  βoνλευτηζ (decurio), most probably in one of the Pisidian cities, must have met the minimum financial requirements for rising to such an office. Probably he was a owner of an estate in the countryside close to Laodicea, enjoying the new lifestyle of the wealthy curiales. from the 3rd century on, many of them left cities, preferring to live on their country estates. The marriage between his son Eugenius and the daughter of a σύγκλητος (senator) would have been attractive for both families of the local ruling class. 

(Tradução): A inscrição é dividida em duas partes, começando com a carreira política de Marco Júlio Eugênio na Pisídia e terminando com sua carreira na congregação dhe Laodicéia. Marco Júlio Eugênio provavelmente nasceu em uma família cristã de alta posição; sua família recebeu cidadania sob os Iulii, mas o cognome Εὐγένιος (de ascendência nobre), que serviu para identificá-lo, reflete o ambiente de língua grega. O pai de Marco Júlio Eugênio, Cirilo Celer, βoνλευτηζ (decurio), muito provavelmente em uma das cidades da Pisídia, deve ter cumprido os requisitos financeiros mínimos para ascender a tal cargo. Provavelmente ele era dono de uma propriedade no campo perto de Laodicéia, aproveitando o novo estilo de vida dos ricos curiales. A partir do século III, muitos deles deixaram as cidades, preferindo viver em suas propriedades rurais. O casamento entre seu filho Eugênio e a filha de um σύγκλητος (senador) teria sido atraente para ambas as famílias da classe dominante local. [8]

Nós abordamos aqui no adcummulus aqui e aqui, referente as perseguições aos primeiros cristãos entre o incêndio de Roma em 64 DC e o início do século III. O cenário posterior foi de bastante tranquilidade para os cristãos nas primeiras décadas do século III, até a ascensão de Décio (249-251 DC). Conforme descreve o Professor Pierre Cabanes (1930-2023), da Universidade Paris X Nanterre, "é o Imperador Décio que retoma com toda força a perseguição em meados do século III, ordenando a todos os cristãos que sacrifiquem aos deuses de Roma. Depois de uma interrupção de 251 a 257, a perseguição é retomada. O Imperador Galieno instaura uma era de tolerância, reconhecendo a propriedade eclesiástica, e esta calma se prolonga por quarenta anos, até 303" [9]. Assim, os cristãos tinham se beneficiado de quase um século de relativa tranquilidade, subitamente interrompida com a grande perseguição de Diocleciano. Cabe observar que a perseguição se iniciou cerca de 20 anos após Diocleciano ascender ao trono,  período em que o cristianismo se expandiu e se consolidou na sociedade romana. Ainda segundo Cabanes, "Diocleciano publicou então quatro editos de perseguição que proíbem o culto cristão, ordena a destruição das igrejas, a prisão dos membros do clero, a libertação daqueles que abjuraram e a condenação à morte dos outros. O último impunha um sacrifício geral aos deuses pagãos. As vítimas contam-se aos milhares; a perseguição era mais ou menos violenta segundo as regiões, prolongando-se no Oriente até 312" [9].  

Os quatro tetrarcas. Escultura em Pórfiro,
Basílica de São Marcos,Veneza, Itália
via wikicommons 


 Diocleciano havia estabilizado o Império após décadas de crise política, administrativa e militar, instituindo um regime chamado Tetrarquia. Diocleciano era o líder último do Império, mas, em 286 DC, transferiu, com sucesso, as responsabilidades da parte ocidental para Maximiano. Diocleciano era um exímio soldado. Maximiano um bom político. Em 293 DC, eles acordaram em indicar um alterno, uma espécie de "imperador auxiliar" para cada metade do Império, tendo Maximiano escolhido Constâncio Cloro (pai de Constantino),  e Diocleciano optado por Galério. Diocleciano e Maximiano tomaram o título de "Augusto", e seus auxiliares Constâncio e Galério seriam "césares". Tentavam resolver dois problemas, primeiro facilitar a administração de um Império sujeito a ameaças militares em várias partes de suas fronteiras simultaneamente, e extremamente vasto em sua extensão e burocracia. Nesse sentido, os tetrarcas estabeleceram capitais em lugares próximos a fronteira, como Constâncio Cloro que ficava em Augusta Treverorum (Trier, atual Alemanha), nas proximidades do Reno, e Galério que foi para Sirmium (atual Sremska Mitrovica, Sérvia), na fronteira do Danúbio. Segundo, esperavam tornar a transição de poder mais suave, tendo os imperadores o controle de sua própria sucessão. Em 305 DC, Diocleciano e Maximiano se aposentaram,  e Galério e Constâncio Cloro se tornaram co-imperadores, que por sua vez indicaram Maximino Daia e Severo II. Contudo, com a morte de Constâncio Cloro em 306, todo o arranjo colapsou, já que as legiões da Gália e da Britânia (atuais França e Inglaterra) aclamaram Constantino (filho de Constâncio) como Imperador, e vários outros, geralmente filhos de "augustos" ou "césares" anteriores fariam movimentos semelhantes nos anos seguintes.

Nesse sentido, é relevante que Marcos Eugenio relate que seus problemas começaram com Maximino Daia, que se tornou Augusto sobre o Leste do Império apenas em 310,  e não com a grande perseguição sobre Diocleciano (303-305 DC).  Os cristãos do início do século terceiro, perceberam rapidamente que os governantes conduziram os editos de perseguição de forma diferente em seus territórios. Em áreas como a Gália (França) e Britânia (Inglaterra), sob Constâncio Cloro e seu filho Constantino, houve algumas igrejas derrubadas e livros queimados, mas com pouquíssimos casos de prisão ou martírio, enquanto no Egito e Siria a perseguição foi intensa e durou quase 10 anos, no resto do Império a situação foi mais fluída. Assim adotaram estratégias para sobreviver durante esse tempo, embora alguns tenham se apresentado as autoridades espontaneamente, a maioria frequentemente fugia de uma parte para outra do Império nos momentos de maior intensidade, lançava mão de conexões ou laços familiares, além de evitar uma postura de confronto. Alguns até subornaram autoridades (ou foram extorquidos). Não resta claro como Eugênio conseguiu evitar a perseguição por alguns anos, até porque estava "no olho do furacão), servindo diretamente ao governador da província como oficial militar.  De qualquer forma, quando se tornou inevitável a perseguição e ao ser obrigado a sacrificar, Eugênio desobedeceu a ordem imperial, e foi duramente punido por isso. Diante, porém da iminência da prisão, tortura e morte, havia a opção de sacrificar aos deuses ou sofrer as consequências.  Pouco tempo depois, em 313 DC, Maximino Daia faleceu, e os Editos de Serdica (311) e Milão (313), passaram a vigorar em seus territórios, cessando completamente a perseguição, com o restabelecimento dos direitos dos cristãos. 

Professora Claudia Rapp, da Universidade Viena, pontua que Eugênio "explorou todas as oportunidades de ascensão disponíveis para alguém de  sua condição social", com um cargo respeitado na burocracia provincial, além de um casamento prestigioso com a filha de um senador, que "deve ter sido um motivo de especial orgulho, pois Júlio Eugênio se dá o trabalho de mencionar seu sogro nominalmente, o que pouco usual nesse tipo de inscrição". Rapp pondera que Eugênio teria preferido evitar conflito renunciando a seu posto, mas isso não lhe foi permitido, e que sua elevada condição social pode ter lhe protegido de algum sofrimento físico (em nossa percepção, pode ter sido o motivo dele não mencionar os primeiros anos da perseguição, por ter conseguido se manter relativamente ileso durante algum tempo).  Ao fim da perseguição, porém, Júlio retorna a sua cidade, e pouco depois é ordenado ao episcopado, pois deve ter sido o candidato perfeito "um nativo que tinha progredido no mundo, um ex servidor público com conexões nas altas esferas, um cristão dedicado e confessor na perseguição, além de ser um homem rico com recursos suficientes para construir um luxuoso complexo eclesiástico para sua cidade". Rapp conclui "as últimas linhas da inscrição testemunham a fusão de orgulho pessoal de sua família, orgulho cívico de sua cidade, e de ter sido benfeitor de sua igreja". [10]

Professor William Tabernee, da Universidade de Oklahoma, contextualiza a tensão e posterior rompimento de Eugênio com sua carreira militar:

Marcus Julius Eugenius' attempt to leave military service, following Maximin Daia's order, that all Christians in the army were to sacrifice to the gods (Imont 69, line 5-9), may have drawn attention to himself. The very fact that there was such an order reveals that the presence of Christian soldiers in the military was well known. Eugenius' Christians faith, therefore, may also have been known by his fellow soldiers even before the order was promulgated. As Eugenius did not become involved with the Christian community of laodicea Combusta until after he had left the army (IMont 69, lines 10-17) and as the merging of Montanist and Novatian ist Christian communities appears to have occurred well into the post-Constantinian era. it is anachronistic to consider Eugenius a "Montanist" at the time of his suffering for the faith under Maximin Daia. In any case, even if any action on his part contributed to his repeated tortures in 311 or 312 such action would have been deemedas a legitimate exception to "voluntary martyrdom" by soldiers. Because Eugenius did not die from his tortures , he, of course, technically was not a "martyr" but a "confessor"

(Tradução): A tentativa de Marcos Julio Eugenio de deixar o serviço militar, após a ordem de Maximiano Daia, de que todos os cristãos no exército deveriam sacrificar aos deuses (Imont 69, linha 5-9), pode ter chamado a atenção para si mesmo. O próprio fato de haver tal ordem revela que a presença de soldados cristãos no exército era bem conhecida. A fé cristã de Eugenio, portanto, também pode ter sido conhecida por seus companheiros soldados antes mesmo da ordem ser promulgada. Como Eugenio não se envolveu com a comunidade cristã de Laodicéia Combusta até depois de ter deixado o exército (IMont 69, linhas 10-17) e como a fusão das comunidades cristãs montanistas e novacianas parece ter ocorrido bem na era pós-constantiniana, é anacrônico considerar Eugenio um "montanista" na época de seu sofrimento pela fé sob Maximiano Daia. Em qualquer caso, mesmo que qualquer ação de sua parte tenha contribuído para suas repetidas torturas em 311 ou 312, tal ação teria sido considerada uma exceção legítima ao "martírio voluntário" por soldados. Como Eugênio não morreu de suas torturas, ele, é claro, tecnicamente não era um "mártir", mas um "confessor"  [11

Tabernee observa que Eugênio estava ligado a uma congregação resultante da fusão de cristãos novacianos e montanistas, os primeiros tendiam a recusar o retorno a comunhão daqueles cristãos que tinham renegado sua fé durante a perseguição, ou utilizado de artifícios como comprar certificados, enquanto os últimos eram conhecidos por serem rigorosos. Tabernee pontua, contudo, que a inscrição não indica que Eugênio tenha atuado como líder eclesiástico até a sua expulsão do exército, sendo anacrônico considera-lo um montanista por ocasião de seu sofrimento. Por ter sofrido por sua fé em Cristo, Marcos era um "confessor", alguém que, diante do sofrimento e ameaça de morte declara sua fé diante de seus algozes, o que evoca o texto bíblico "Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão para que sejais tentados; e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida" (Apocalipse 2:10). Considerando a data em que Marcos Júlio Eugênio sofreu os efeitos da perseguição e deixou o exército, mais seus 25 anos de episcopado, deve ter falecido por volta do ano 340 DC.

Aurélio Gaio - legionário itinerante que esperava a chegada da ressureição

Na cidade de Cotiaeum, na antigo Frígia (atual Kutahya, Turquia), no ano de 303 DC, após uma carreira nas legiões romanas, Aurélio Gaio erigiu um jazigo familiar.
Aurélio Gaio segundo, que se alistou na Legião I Itálica estacionada na Moésia, foi selecionado para servir na Legião VIII Augusta estacionada na Germânia, depois na Legião I Iovia Scythica nas províncias de Cítia e Panônia; serviu como novato, aprendiz de cavaleiro, depois optio, optio triarius, optio ordinatus, optio princeps, depois optio nas forças móveis do imperador com a Legião I Iovia Scythica; percorreu as províncias da Ásia, Cária, […], Lídia, Licaónia, Cílicia, […], Fenícia, Síria, Arábia, Palestina, Egito, Alexandria, Índia, […], Mesopotâmia, Capadócia, […], Galácia, Bitínia, Trácia, Moésia, Carpia, […], Sarmácia quatro vezes, Viminacium, Godos duas vezes, Germânia, […], Dardânia, Dalmácia, Panônia, […], Gália, Hispânia, Mauritânia; em seguida, foi promovido e, depois de ter sofrido muitas dificuldades, voltou para sua terra natal, Pessino, fixando residência na aldeia de Kotiaion. Juntamente com sua filha Macedônia, ele ergueu esta estela no túmulo de Júlio, seu filho, e de Areskusa, sua dulcíssima esposa, às suas próprias custas, por causa da memória, até a ressurreição. Adeus a todos. [12]
A inscrição descreve as unidades em Aurélio serviu, e os lugares em que foi designado, da Germânia (Alemanha), até a Mesopotâmia (atual Iraque), passando pelo Egito, Turquia, Espanha até a Índia. O grande número de deslocamentos, boa parte nas fronteiras do Império, indica a enorme pressão militar sobre Roma naquele período. Conforme Richard Talbert e Lindsay Holman, da Universidade da Carolina do Norte, e Benet Salway, da University College de Londres, interpretam a inscrição [13] no sentido que ele serviu inicialmente na fronteira do Danúbio, entre 285 e 294 DC, sob o comando de Diocleciano, onde ocorreram 3 das 4 incursões na Sarmatia. Em 294 DC, a unidade de Gaio, já sob o comando de Galério, inicia uma missão além da primeira catarata do Nilo (sul do Egito), e depois até a Mesopotâmia (Iraque), retornando a Europa para lutar contra os Carpi (que residiam na atual Romênia). Gaio retorna ao comando de Diocleciano, e no final de 295 e início de 296 DC, para uma missão a oeste, na Panônia (parte das atuais Hungria, Áustria e Eslováquia), onde provavelmente ocorreram os combates com os Godos (duas vezes) e na Germânia (atual Alemanha). Em 296 DC, ele foi então transferido para o exército de Maximiano, que se move de Nórica (parte da atual Áustria) em direção ao sudoeste, até a Mauritânia, no norte da Africa (norte dos atuais Marrocos e Argélia) e de lá para leste até a província da África Proconsular (atuais Tunísia e Líbia). Por fim, é provável que ele tenha acompanhado Maximiano a Itália em 299 DC, e de lá participado na quarta incursão na Sarmátia no final daquele ano [13].  

 Aurélio iniciou como novato, chegou a cavaleiro e depois foi promovido a Optio, (oficial assistente do centurião e tinha a responsabilidade de se postar atrás da tropa orientando a formação e transmitindo as ordens dos comandantes). Como optio, em várias capacidades, Gaio serviu por muitos anos, e ascendeu socialmente (como o próprio comissionamento da inscrição indica), já que essas funções representavam soldos muito mais elevados. Após uma promoção, e "muitas dificuldades" voltou para sua terra natal, Pessino, fixando residência na vila próxima de Kotiaion, na Frígia. Aurelio recorda a mortes de seu filho, Júlio, e de sua esposa Areskusa. O caráter cristão da inscrição é expresso por uma abrupta menção a ressurreição.

O Professor Brian Campbell,  da Queen's University Belfast, traz mais alguns detalhes em relação aos postos em que Aurélio serviu e nas tropas em que esteve alistado.
Aurelius had served as a cavalyman in the lanciarii, who had probably been organized by Diocletian as part of the comitatus. In his long military carreer, in the record of which there are several gaps because of the damaged state of the inscription, he had visited at least twenty-three provinces or dioceses, four towns, and five regions situated outside Roman territory. He served in Legion I Jovia Scythica, which was recruited by Diocletian and based at Noviodunum; moreover the campaigns in which he participated against the Sarmatians, Goths. Germans, and in Mesopotamia. India, and Egypt, suggest a date in the reign of Diocletian, probably around AD 300. Aurelius was apparently a Christian serving in the army, before Christianity had been officially adopted. (Tradução) Aurélio serviu como cavaleiro nos lanciarii, que provavelmente foram organizados por Diocleciano como parte do comitatus. Na sua longa carreira militar, em cujo registo existem várias lacunas devido ao estado danificado da inscrição, visitou pelo menos vinte e três províncias ou dioceses, quatro cidades e cinco regiões situadas fora do território romano. Serviu na Legião I Jovia Scythica, recrutada por Diocleciano e baseada em Noviodunum; além das campanhas em que participou contra os sármatas, godos, germânicos e na Mesopotâmia,  Índia e Egito sugerem uma data no reinado de Diocleciano, provavelmente por volta de 300 DC. Aurélio era aparentemente um cristão servindo no exército, antes de o Cristianismo ser oficialmente adotado. [14]

 

Mapa do Império Romano, sob a Tetrarquia, indicando as 
respectivas dioceses, e os territórios administrados por
cada Tetrarca, via wikicommons
 
Professor Timothy Barnes, da Universidade de Edimburgo, faz considerações adicionais em termos do serviço das legiões citadas por Gaio no contexto mais amplo da tetrarquia e do contexto do decreto conjunto de Diocleciano e Galério (entre 299-300 DC) contra os cristãos no exército, descrito por Lactâncio,  que foram obrigados a sacrificar aos deuses ou serem dispensados com desonra. Ainda que o expurgo tenha sido imposto com muito mais efetividade nas províncias do Leste (e o último posto de Aurélio foi no oeste), este pode ter percebido para onde "o vento estava virando", com "muitas dificuldades" referidas na inscrição e decidido se aposentar antes que a situação deteriorasse ainda mais. 

"Gaius served in many areas of the Roman Empire, which the inscription names in geographical order. Although some names are lost, those that survive indicate that Gaius' military service included periods not only on the Danube frontier before 293 and in southern Egypt under Galerius in 293-294, but also under Maximian in Gaul, Spain and Mauretania during his expedition to Africa in 296-298 (...) Since Gaius probably left the army shortly after 298, it seems natural to infer that he was a Christian who either resigned or was cashiered because of the purge (...) But if Gaius latest datable service was in the West in 298, he may have retired before Galerius' purge, which affected only the eastern armies. (Tradução) Gaius serviu em muitas áreas do Império Romano, que a inscrição nomeia em ordem geográfica. Embora alguns nomes tenham sido perdidos, aqueles que sobreviveram indicam que o serviço militar de Gaius incluiu períodos não apenas na fronteira do Danúbio antes de 293 e no sul do Egito sob Galério em 293-294, mas também sob Maximiano na Gália, Espanha e Mauritânia durante a sua expedição à África em 296-298 (...) Como Gaio provavelmente deixou o exército pouco depois de 298, parece natural inferir que ele era um cristão que renunciou ou foi demitido por causa do expurgo (...) Mas se o último serviço datável de Caio foi no Ocidente em 298, ele pode ter se aposentado antes do expurgo de Galério, que afetou apenas os exércitos orientais. [15].

 Ainda conforme Barnes [15], após seu início em 303 DC, o primeiro a fazer cessar a perseguição foi Constantino, que imediatamente a sua proclamação como "augusto" pela legiões do oeste em 26 de julho de 306 DC, decretou plena liberdade religiosa nas províncias da Espanha, Gália e Grã Bretanha. Constantino também devolveu os bens e propriedades confiscadas. Ainda no inverno de 306 DC, Maxêncio, que em outubro havia usurpado os territórios da Itália e Norte da África de Severo II, decretou o fim das perseguições, sem porém devolver as propriedades. Nos Balcãs e Asia Menor, Galério não só manteve a perseguição até 311 DC, como a intensificou, até que, perto da morte, decretou seu edito de plena tolerância aos cristãos (Edito de Sérdica) nos territórios em que era Augusto, ou seja, nas províncias ao leste da Itália. Entretanto, seu subordinado, Maximiano Daia, rapidamente agiu para anular o Edito de Sérdica, reforçando a perseguição em seus territórios, no Egito e Síria, bem como na Asia Menor, que ele invadiu. Somente em 313 DC, quando Maximiano foi fragorosamente derrotado por Lícinio em Tzirallum, ele decretou o fim da perseguição. Poucos meses depois, ficou doente e morreu (ou se suicidou) em Tarso.

Nesse contexto, Aurélio viveu. Não resta claro se chegou a sofrer os efeitos da perseguição, pois ele preferiu descrever sua vida como soldado, na suas andanças por todo o Império, como progrediu no seu trabalho, e nos seus familiares. Não deixa de mencionar a fé na ressureição. Possivelmente, viveu e morreu antes da oportunidade de viver livremente sua fé.   

 Referências Bibliográficas

[1] Tertuliano, De Corona Militis, 1
[2] TertulianoApologia, 5
[3] Ronald J Syder (2012), The Early Church in Killing, fl. 203
[4] Péter Kovács(2017) Marcus Aurelius’ rain miracle when and whereštu dijné zvesti archeologického ústav u AV 62, 2017, 101 –111
[5]  §356 Aurelius Niceros – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine
[6] Frank Tombley (2008), Overview: Geographic Spread of Christianity, In Margareth Mitchell e Frank Young (editores) - The Cambridge History of Christianity, Volume 1, 310-312
[7] §357 Marcus Julius Eugenius – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine (armyofromanpalestine.com)
[8] Cilliers Breytenbach, Christiane Zimmermann (2018) Early Christianity in Lycaonia and Adjacent Areas: From Paul to Amphilochius, fl. 576
[9] Pierre Cabanes (2004), Introdução à História da Antiguidade, fl 224
[10] Claudia Rapp (2005), Holy Bishops in Late Antiquity: The Nature of Christian Leadership ion an Age of Transition, fl. 203-204 
[11] William Tabernee (2007) Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions, fl. 235-236
[12] §362 Aurelius Gaius – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine,
[13] Richard Talbert, Lindsay Holman, Benet Salway (2023), Atlas of Classical History, fl. 185, segunda edição;
[14] Brian Campbell (1994) The Roman Army, 31 BC - AD 337: A Sourcebook, fl. 240;
[15] Timothy D Barnes (2010) Early Christian Hagiography and Roman History, fl. 107, nota 19;




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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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